Nem Tudo – Zélia Duncan e Edu Tedeschi

Nem Tudo

Nem tudo que reluz corrompe
Nem tudo que é bonito aparenta
Nem tudo que é infalível se aguenta

Nem tudo que ilude mente
Nem tudo que é gostoso tá quente
Nem tudo que se encaixa é pra sempre

Nem tudo que é sucesso se esquece
Nem todo pressentimento acontece

Nem tudo que se diz tá dito
Nem tudo que não é você é esquisito

Nem tudo que acaba aqui
Deixa de ser infinito
Nem tudo que acaba aqui
Deixa de ser infinito

 Por: Zélia Duncan e Edu Tedeschi

A Alma dos Diferentes – Artur da Távola

A alma dos diferentes

Ah, o diferente, esse ser especial!

 Diferente não é quem pretenda ser. Esse é um imitador do que ainda não foi imitado, nunca um ser diferente.

 Diferente é quem foi dotado de alguns mais e de alguns menos em hora, momento e lugar errados para os outros. Que riem de inveja de não serem assim. E de medo de não agüentar, caso um dia venham, a ser. O diferente é um ser sempre mais próximo da perfeição.

 O diferente nunca é um chato. Mas é sempre confundido por pessoas menos sensíveis e avisadas. Supondo encontrar um chato onde está um diferente, talentos são rechaçados; vitórias, adiadas; esperanças, mortas. Um diferente medroso, este sim, acaba transformando-se num chato. Chato é um diferente que não vingou.

 Os diferentes muito inteligentes percebem porque os outros não os entendem. Os diferentes raivosos acabam tendo razão sozinhos, contra o mundo inteiro. Diferente que se preza entende o porque de quem o agride. Se o diferente se mediocrizar, mergulhará no complexo de inferioridade.

 O diferente paga sempre o preço de estar – mesmo sem querer – alterando algo, ameaçando rebanhos, carneiros e pastores. O diferente suporta e digere a ira do irremediavelmente igual: a inveja do comum; o ódio do mediano. O verdadeiro diferente sabe que nunca tem razão, mas que está sempre certo.

 O diferente começa a sofrer cedo, já no primário, onde os demais de mãos dadas, e até mesmo alguns adultos por omissão, se unem para transformar o que é peculiaridade e potencial em aleijão e caricatura. O que é percepção aguçada em :”Puxa, fulano, como você é complicado”.

O que é o embrião de um estilo próprio em: “Você não está vendo como todo mundo faz?”

 O diferente carrega desde cedo apelidos e marcações os quais acaba incorporando. Só os diferentes mais fortes do que o mundo se transformaram (e se transformam) nos seus grandes modificadores.

Diferente é o que vê mais longe do que o consenso. O que sente antes mesmo dos demais começarem a perceber. Diferente é o que se emociona enquanto todos em torno agridem e gargalham. É o que engorda mais um pouco; chora onde outros xingam; estuda onde outros burram. Quer onde outros cansam. Espera de onde já não vem. Sonha entre realistas. Concretiza entre sonhadores. Fala de leite em reunião de bêbados. Cria onde o hábito rotiniza. Sofre onde os outros ganham.

 Diferente é o que fica doendo onde a alegria impera. Aceita empregos que ninguém supõe. Perde horas em coisas que só ele sabe importantes. Engorda onde não deve. Diz sempre na hora de calar. Cala nas horas erradas. Não desiste de lutar pela harmonia. Fala de amor no meio da guerra. Deixa o adversário fazer o gol, porque gosta mais de jogar do que de ganhar. Ele aprendeu a superar riso, deboche, escárnio, e consciência dolorosa de que a média é má porque é igual.

 Os diferentes aí estão: enfermos, paralíticos, machucados, engordados, magros demais, inteligentes em excesso, bons demais para aquele cargo, excepcionais, narigudos, barrigudos, joelhudos, de pé grande, de roupas erradas, cheios de espinhas, de mumunha, de malícia ou de baba. Aí estão, doendo e doendo, mas procurando ser, conseguindo ser, sendo muito mais.

A alma dos diferentes é feita de uma luz além. Sua estrela tem moradas deslumbrantes que eles guardam para os pouco capazes de os sentir e entender. Nessas moradas estão tesouros da ternura humana. De que só os diferentes são capazes.

 Não mexa com o amor de um diferente. A menos que você seja suficientemente forte para suportá-lo depois.

Por: Artur da Távola

 

Os Limites do Autos – Affonso Romano de Sant’Anna

Os limites do autor

Às vezes, ocorre
um autor estar
aquém
— do próprio texto.
De o texto ter-se feito,
além dos dedos,
como gavinha que inventou
a direção de seu verde,
e fonte que minou
o inconsciente segredo.
Um texto ou coisa
que ultrapassa a régua,
a etiqueta e o medo,
copo que se derrama,
corpo que no amor
transborda a cama
e se alucina de gozo
onde havia obrigação.
Enfim, um texto operário
que abandonou o patrão.

Às vezes ocorre
um autor estar aquém
da criação.
O texto-sábio
criando asas
e o autor pastando
grudado ao chão.

— Como pode um peixe vivo
estar aquém do próprio rio?
— Que coisa é esse bicho
que rompe as grades do circo
e se lança na floresta
no descontrole de fera?
— Que coisa é essa
que se enrola?
É fumaça? ou texto?
que se alça do carvão?

Lá vai o poema ou trem
que larga o maquinista
na estação
e se interna no sertão.
Ali o poema
olhado de binóculo
— só de longe tocado —
e o autor, falso piloto
largado na pista ou salas
do aeroporto, atrás do vidro,
enquanto o texto
levanta seu vôo cego
com o radar da emoção.

Enfim,
um poema que vira pássaro
onde termina a mão
ou avião desgovernado
que ilude o autor e a pista
e explode na escuridão.      

Por Affonso Romano de Sant’Anna

 

Agora É Que São Elas – Lenine

Agora e que são elas

Belas, singelas, donzelas,
Sem elas o mundo não vai pra nenhum lugar.
Santas, rainhas, meninas,
Com elas o mundo aprendeu a girar.
Do mistério à criação
Do desejo à compaixão

Elas
Agora é que são elas
Cinderela, Rapunzel,
A tinta que dá sentido ao papel
O pincel, aquarela
E a mão que assina a pintura na tela

Loucas Varridas, mimadas,
Sem elas o mundo é sem rumo e sem direção.
Lindas, Espertas, Dengosas,
Pancadas de chuva sem previsão.
Do mistério à criação
Do desejo à compaixão

Elas
Agora é que são elas
Cinderela, Rapunzel,
A tinta que dá sentido ao papel
O pincel, aquarela
E a mão que assina a pintura na tela

Manas, insanas, ciganas,
Sem elas o nosso pecado não tem perdão.
Divas, benditas,
Sagradas barrigas gerando a multiplicação.

       Por Lenine

 Imagem: Romero Brito

 

E Tudo Mais – Lulu Santos

E tuudo mais

ESTÁ EM NOSSAS MÃOS

É A NOSSA VIDA

CADA ESCOLHA SEMPRE DETERMINA

O QUE VEM EM SEGUIDA

       Por Lulu Santos

 

Encontro – Rubem Alves

Encontro

Não havíamos marcado hora, não havíamos marcado lugar. E, na infinita possibilidade de lugares, na infinita possibilidade de tempos, nossos tempos e nossos lugares coincidiram. E deu-se o encontro.

       Por Rubem Alves

Nossa Casa – Arnaldo Antunes

nossa casa

Na nossa casa amor-perfeito é mato

E o teto estrelado também tem luar

A nossa casa até parece um ninho

Vem um passarinho pra nos acordar

Na nossa casa passa um rio no meio

E o nosso leito pode ser o mar

A nossa casa é onde a gente está

A nossa casa é em todo lugar

A nossa casa é onde a gente está

A nossa casa é em todo lugar

A nossa casa é de carne e osso

Não precisa esforço para namorar

A nossa casa não é sua nem minha

Não tem campainha pra nos visitar

A nossa casa tem varanda dentro

Tem um pé de vento para respirar

A nossa casa é onde a gente está

A nossa casa é em todo lugar

A nossa casa é onde a gente está

A nossa casa é em todo lugar

 Por Arnaldo Antunes

 Letra Nossa Casa

 

Cada Palavra – Viviane Mosé

CADA PALAVRA

Procuro uma palavra que me salve
Pode ser uma palavra verbo
Uma palavra vespa, uma palavra casta.
Pode ser uma palavra dura. Sem carinho.
Ou palavra muda,
molhada de suor no esforço da terra não lavrada.
Não ligo se ela vem suja, mal lavada.
Procuro uma coisa qualquer que saia soada do nada.
Eu imploro pelos verbos que tanto humilhei
e reconsidero minha posição em relação aos adjetivos.
Penso em quanta fadiga me dava
o excesso de frases desalinhadas em meu ouvido.
Hoje imploro uma fala escrita,
não pode ser cantada.
Preciso de uma palavra letra
grifada grafia no papel.
Uma palavra como um porto
um mar um prado
um campo minado um contorno
carrossel cavalo pente quebrado véu
mariscos muralhas manivelas navalhas.
Eu preciso do escarcéu soletrado
Preciso daquilo que havia negado
E mesmo tendo medo de algumas palavras
preciso da palavra medo como preciso da palavra morte
que é uma palavra triste.
Toda palavra deve ser anunciada e ouvida.
Nunca mais o desprezo por coisas mal ditas.
Toda palavra é bem dita e bem vinda.

 Por Viviane Mosé

 Cada Palavra

 

POEMAS – Arnaldo Antunes /Waly Salomão/Bernardo Vilhena

poema

A palavra precisa lança o som à velocidade da luz
Onde nós e você
Dominamos o espaço
A imagem fala por si
E por mim
Portanto flutuaremos pelo avião
Como um par dançante
Perseguidos pelos olhares estrelados
De uma platéia atenta
É fundamental o texto
(Bernardo Vilhena)

 A gagueira quase palavra

Quase aborta
A palavra quase silêncio
Quase transborda
O silêncio quase eco

A gagueira agora
O século eco
(Arnaldo Antunes)  

 Hoje só quero Ritmo.

Ritmo no falado e no escrito
Ritmo, veio-central da mina.
Ritmo, espinha dorsal do corpo e da mente.
Ritmo na espiral da fala e do poema.
Ritmo é o que mais quero pro meu dia dia.
(Waly Salomão) 

       Por Arnaldo Antunes /Waly Salomão/Bernardo Vilhena